5/09/2003

Annie

A caminho da Beira Baixa
há um caminho cheio de rosas
e em que uma grande rosa
é uma das grandes villas

Uma mulher passeia-se sozinha no jardim
no jardim sozinha
e nós olhamo-nos
no jardim tolhado de jasmim.

Como esta mulher é pura!
Não tem espinhas na cara
olhamo-nos quase da mesma maneira
sobre os botões.
Rapaz
estou à espera do sol
em Maio
ou antes
O desenho não existe
o desenho é belo soberbo
a água não é parada
e a palavra é idiota
A palavra é maravilhosa
o desenho é água
o fulgor
a água move-se
Menina descalça

Menina descalça
anda descalça
menina cão
anda de cão
descalça descalça
cão descalço

Menina que moras
menina que moras
menina do outro lado do rio.
Noites cinzentas
nevoeiro cinzento
iates em branco
Tosse
uma
suavidade

em
morder

um dente
Doce
As cores transparentes
dentro delas
são as mais halucinantes
são belas
como mulheres
daquelas
cor-de-rosa.
Como um traço em cuja ponta
nunca mel
Quero fazer um diário colôre

Queria sim

para rios te
ri-te de mim

e lembra-te:

  lê-me
Rapos, sapos, rapos e lagartos

tixas tixas tixas
come

Rapa
tapa mica topa

Que sê
Bonjour Paris

(je t’aime tant
qu’il faudrait un cabattoir
pour
of.
O que eu sinto
não é lástima nem fora do normal.
São ânsias e discrepâncias
nuas com um ponto

5/07/2003

BERLIM



1

Conheço uma cidade de onde se vê o campo. Uma colina com uma casa grande amarela, janelas alinhadas e um telhado castanho. Dali, por sua vez vê-se o mar, agora encrespado e tão hostil que parece sujo. Para lá do mar há nevoeiro e adivinha-se o resto. No meu quarto acabo de pisar a roupa dentro da pequena mochila, e preparo-me para ir ter com a Petra, que já me aguarda. O carro parece pronto a partir para uma grande viagem, que será só até ali, à colina que se vê. Petra sai do café, traz uma caixa de chicletes. Prepara-se para conduzir horas seguidas, só lhe faltava calçar umas luvas, é a dona do carro. Dá-me um beijo na boca. Naquele hotel virado para o mar já nos conhecem, e sabem que ficaríamos na casa amarela se não estivesse em ruinas. Mas é na ruina que passamos grande parte das noites e dormimos até tarde no hotel. De lá não distingo a minha casa no meio do aglomerado urbano; só o rio.
Há sempre dias assim, em que só me sinto bem ao pé da Petra e longe dos outros. São doces, mas também com uma pedra de angústia deslocada sobre o lado esquerdo do diafragma. Ninguém me conhece como ela, por isso sabe que aqueles são momentos únicos, sem significados para lá do rio. Mas acredita que eu nunca encontrarei o meu sonho (porque sempre o perseguirei), e que da memória seja ela a pepita que sobressai. (É assim que me aproveito das pessoas, levando-as pela mão tão fundo até ao azul que só aí existe.)
O vento sopra para lá e as ondas rolam para cá; é da espuma que se faz o nevoeiro, da espuma que se desfaz no "lip" e sobe a pique.
(Se algum dia lhe tivesse conseguido compreender o olhar...ela é difícil, é uma luta, com os seus avanços e retrocessos, as manobras de campanha, os pressupostos beligerantes e a manhã fria após a batalha.)
Sentámo-nos na colina, eu atrás dela. Estávamos virados bem de frente para o sol, e chegava rapidamente o ocaso. Até parecia que já tínhamos reservado a passagem há muito, tão predestinado parecia este momento de comunhão com as esferas..."oh meu deus sinto-me transportado!"
Vooosh!
_tenho areia entre os dedos dos pés...
_...hmmm, está quentinho no sol
_olha o joão!
_não ouves um saxofone?
_(risos) um telefone
é o são pedro
a chamar os bombeiros
_...(risos) mas como era o nome do tipo que te ensinou a ir ao sol?
Bisnaga?
era...
_O que é que foi? fala, disse ela.
,
eu estava a tentar ver o mais longe possível. Sabia que os meus olhos estavam a brihar. As narinas tremiam-me e o meu peito estava dilatado. Quando baixei as pálpebras senti os olhos quentes e uma espiral agradável na palmas das mãos. Uma bricadeira com os meus sentidos, explorando as aparições não-figurativas do nevoreiro até se tornarem tácteis.




2

Comecei ontem a procurar-te. Ao fim da tarde, num bar,
eu já tinha tomado café e ela estudava cadernos em cima da mesa, não era bem ao canto da sala, depois de uma estante com livros e vasos contra uma parede. Ao levantar-se para ir comprar tabaco, mostrou-me os olhos grandes. O empregado do balcão atinado e discreto; veio dizer-me que o Oscar, por quem eu esperava havia já uma meia hora, não devia tardar a descer. (Eu tinha conhecido a gerente da casa dois dias antes, e ela insistira que eu devia falar com o Oscar. Acho que simpatizámos, a sua delicadeza, pela qual pude entrar, era antes uma comunicação fragilizada pelo excessivo esmero no seu trabalho.) Quando toca o telefone: "Chama-se Sofia?", inquiriu o empregado por cima do balcão. A estudante de olhos grandes voltou a olhar para mim; afinal era Sofia; e não era eu do outro lado da linha.
Saí para a rua, pouco confiante na entrevista com o Oscar. Também, o que poderia ele adiantar-me sobre o assunto? Ele nem sequer estava presente quando eu fui assaltado e, no estado em que o vi depois, duvido que se lembrasse de quem estivera comigo antes ou de quem quer que fosse naquela noite.
Estava cismado em ir a pé até casa, com a chuva para me coroar mártir da minha história. Mas ainda não havia suspeitos palpáveis na minha história que me enxugassem o cabelo ao chegar a casa. Encostei numa paragem de autocarro e gostei de fumar um cigarro sozinho, na rua deserta, naquela paragem que não me protegia os pés da chuva; olhando para o alto candeeiro podia ver as gotas de água voarem à frente do vento. O autocarro tardava, mas eu estava esquecido a olhar para as gotas de água a divertirem-se. Quem parecia não se importar com a chuva era aquele vulto que lá vinha ao fundo do outro lado da rua. Caminhava direito, de braços cruzados sobre os cadernos. "ERKLAD IM MAMESTRI!" Mas se não é...Sofia? À luz do candeeiro aqueles olhos fitos em mim, mal dei conta que o autocarro chegara e as suas portas automáticas me convidavam para entrar depressa. Saltei lá para dentro por instinto, e talvez por medo: tinha reparado que Sofia se encontrava uns dez centímetros acima do chão, sim, a flutuar.
Já sabia que, no dia seguinte, no bar, me diriam que ninguém tinha estado naquele canto a estudar. Chegado a casa telefonei ao Oscar:
"deixa lá isso pá!...téréré, téréré...então!...", finalizou ele, mandando-me um abraço.
-A flutuar? perguntou a Luisa, como a querer mais pormenores (e conversa).
-Não, mas não é a mesma, esclareci enfadado. Desculpa, não me apetece explicar.
Fechei-me no quarto, peguei numas quantas folhas escritas recentemente e coloquei-as sobre uma mesa minuscula: o que é, tem de estar aqui.














3

Já estava era enterrado na cama, com a papelada solta entre as mãos. Da última vez que o cinzeiro frequentara aquele sítio num arraial de meios para escrever, cinzeiro, tabaco, fósforos, papeis e caneta, entornara-se quando eu desesperava à procura da tampa da caneta entre os lençóis que agora só servem de poiso ao meu corpo estirado nu e a estes papeis e a uma caneta sem tampa.
Por isso tirei uma passa longa e voltei a pousar o cigarro no cinzeiro, como fazem os belgas. O cinzeiro em cima da mesa minuscula.
Corrigia algumas frases, atento a que o ladrãozito me escorregasse na gramática. Já lhe começara a ganhar uma certa ternura_mas não seria isso que o ilibaria do envolvimento naquele roubo ignóbil, gesto mundano e irreflectido, roubar-me a flor que eu trazia na lapela, durante esses breves instantes de loucura. Não digo porquê, mas era um objecto de significado especial para mim.
Perdera a sequência a algumas folhas ou eram as analepses que não se encontraram misturadas com os planos cinematográficos ou apenas um mal entendido entre tempos de verbos.
Consegui dividir aquilo em três grupos fundamentais: as histórias inventadas, aquelas inspiradas em algo, e as que eu escrevi possesso. Após este trabalho não tão metódico, resolvi pegar numa folha branca mas parei. ao ver aquele cabelo azul sobre o papel. E parei como já tendo vivido essa imagem antes. Aquele cabelo não era meu! certamente, e não havia ali ninguem para testemunhar a minha descoberta. Chamar a Luisa seria como queixar-me da mosca na sopa ao chefe dos camaleões. Era obviamente um cabelo de mulher, como qualquer um o reconheceria se o tivesse visto assim, impunemente estendido sobre a minha folha de papel.
A minha primeira reacção foi... a de o pentear? não, ficava bem assim solto. Dei comigo a segui-lo com a caneta, escrevendo linhas atrás dele que dobravam esquinas, entravam e saíam de edificios, apanhavam aviões e apanhavam chuva e vento também até ao fim da página. Carolina, o que fazes aí? O desconcerto desta situação fez-me perder o fio à meada. Não sei o que se passa comigo, Carolina, mas algo me diz que o ladrão é uma "ela". "Tu tens é (...)". "Eu...?" perguntei, mas já saía da cama em direcção ao duche. Gosto muito do meu duche porque tem uma janela para a rua, de onde vejo neste momento uma garota que espera pelo autocarro para ir para a escola, cadernos agarrados ao peito, naquele gesto...desço as escadas num tropeção compondo a toalha à volta das ancas escorrendo. Chego a tempo de ver o autocarro afastar-se. Ao ver-me naquela figura a Dona Amélia do terceiro faz-me um grande sorriso desdentado; apeteceu-me tirar a toalha e mostrá-lo. À vinda para cima imaginei coisas. Não pode ser!
Encontrei a Carolina com uma folha entre as mãos. "Isto, é o nosso passeio do Verão passado?" Não, o Verão passado já lá vai Carolina, agora é Inverno, mas guardo de ti as melhores recordações.










4

dia 19
Fui mesmo mesmo até ao fim da linha. Aquela velha estação de comboios já tinha visto melhores dias sim. E talvez não tardasse a ser fechada, como todo esse troço, o governo é que sabe disso. Dali apanharia facilmente uma boleia até ao meu destino. Não vou esperar pela carreira, é fácil conseguir uma boleia destes bons homens.
Deixava para trás o percurso das recordações verdes das encostas e antracite do rio cavado.
Parece que tinha acabado de atravessar um inverno bonito, com gotículas sobre as parras monte acima, densas quando vistas do sopé por onde passa a janela do meu comboio. até lá bem ao cimo e depois se funde na bruma que já faz parte do céu uniformemente nublado. Não sei aonde está o sol. "Está lá atrás" descansou-me a Paula no dia seguinte, comíamos uma sopa de feijão e só fazia frio lá fora. Os bancos de madeira toscos não eram confortáveis, mas sem dúvida que não lhes chamarias desconfortáveis.
Foi lentamente que uma ou outra expressão se esgueirou dos teus lábios.
Foi na estrada castanha que íamos calados dentro do jipe, depois da curva iríamos rever o rio do dia anterior, dos dias em que ela me dá boleia porque afinal não passa mais ninguém na estrada para cima. Eu ia dentro do jipe e ela conduzia tão serena, como que a dizer apenas que estávamos ali. O limpa pára-brisas do meu lado não funcionava, e o meio vidro meio embaciado todo espalhado de gotas de água passava um filme muito real, que a desfocagem impeça deus de me enganar.
Depois de fazermos a curva castanha avermelhada lá estava eu em pé, ainda com fé que alguém apareceria não tinha sequer pousado a mala.
Parece que ali fiquei para sempre, para sempre que desejasse revivê-lo o sorriso feio com a bochecha ao reconhecer o condutor na última volta do limpa pára-brisas que funcionava. Claro que não há coincidências, claro que um arauto te foi dizer que eu viria quando tu passasses.



5

O rio corria magestoso depois das enxurradas e era a irreversibilidade desta viagem; a minha alma ia pousada numa folha côncava e descia o rio à velocidade de um foguetão, à mesma velocidade das águas, à velocidade dos acontecimentos: como se parado no tempo, em que só a matéria e a dimensão se transformam. (e as pedras tombam no fundo).
Começara a chover e voltámos para o jipe com as botas enlameadas. Foi ela quem ligou o rádio e as melodias eram orquestradas com gravilha; também o rio não ia plano, ia salpicado. Num gesto brusco a Paula ligou o motor e arrancou cavando um sulco, como lhe era peculiar, às vezes.








6

Há pessoas horríveis, e é bem provável que tu sejas uma delas.
No tasco da vila há velhos porcos, apesar de outros gostarem de nos ver, vejo-o no olhar. Na pastelaria de marmorite há mulheres que já nasceram amputadas de personalidade, monstrengos de dar corda ao embalo das frustrações encarnadas umas nas outras num círculo seco, que viram a boca para um lado e os olhos para aqui, que nos cumprimentam com deferência retardando a sua própria morte. Nunca viram o mar, nem o céu. Reparei de relance nas cuecas de uma ao fundo da mini-saia de popeline. Uma outra me parece deslocada nesse meio, tem um casaquinho de lã e mamas grandes, é novinha e já a tinha visto com aquelas calças de ganga que bem lhe ficam roçadas. Ao se dar conta que a contemplo faz um ar sério, que pena, vira as costas, balanceia as ancas, arruma o cabelo liso para trás dos ombros e dirige-se à outra; esta olha para mim e esconde a cara de seguida atrás do corpo da amiga num risinho.
Que pormenores pequeninos e engraçadinhos, dentro da pastelaria que tem as vidraças embaciadas e a entrada suja com lama.
Apetece-me voltar a casa e manifesto-o, a Paula acede, e sei que vamos conversar para a lareira com o pai dela, o que é sempre transportador com a ajuda de uma jeropiga. Começou a chover a meio do caminho e molhámo-nos, o que foi bom.



7

Não precisei de inventar uma desculpa para sairmos depois de jantar; eu queria ir à festa do Emanuel.
Só para fazer uma pergunta a certa pessoa que eu sabia que lá iria estar.
Passei em casa a mudar de roupa.
"é para ti (estendendo-lhe isto) quando é que voltas de berlim?"
Uma vez um tipo chegou ao guichet da estação e pediu um bilhete de ida e volta. "De ida e volta para onde?" perguntou o tipo lá de dentro. "Ida e volta para aqui, evidentemente!"
Deus seja louvado.



8

Acordo todos os dias cedo para ir para o trabalho. Faço mentiras.
Chegado lá tiro o casaco, e depois é como num dia normal. Às vezes a Dora não vem e ponho o rádio mais alto.



antónio coxito, fevereiro de 1996

e vira,